Nota: O cidadão Divaldo Martins (na foto) voltou a supreender os leitores do jornal O PAÍS na edição de 10 de Julho com um fantastico texto de opinião intitulado “O tempo dos surdos e dos mudos”. Para além de périto em assuntos policiais Divaldo teve uma curta, se assim podemos considerar, passagem pelo jornalismo na Agencia de Noticia Angola Press (ANGOP).
Eis o texto do Divaldo Martins na integra:
Nasci num tempo em que já não havia nem colonos nem guerra colonial. Havia guerra entre nós, mas colonial já não havia. A minha infância foi povoada de relatos e vestígios de morte, a minha adolescência vivida entre o medo de ir a tropa e a esperança no fim da guerra. No meio de tudo isso ouvia histórias. O futuro era uma incógnita, por isso falava-se do passado. De um passado preenchido de coragem em busca da liberdade. E aos meus olhos, Agostinho Neto e os seus companheiros eram os heróis da vida real.
Enquanto ouvia as histórias, tentava colocar-me naquele tempo, imaginava-me no meio do Rangel ou do Sambizanga, com uma catana na mão, nas reuniões clandestinas do movimento, nas fugas para o Congo, a vida no maquis, nas matas e nas lutas. Imaginava-me na escrita camuflada do Luandino, nas músicas do David Zé, e experimentava o medo, a revolta, a angústia, a raiva também, mas principalmente a coragem dos que construíram aquelas histórias. Sentia inveja por não ter vivido naquele tempo para poder ser um herói como eles foram, porque tinha a certeza que nunca mais iríamos viver tempos como aqueles, em que homens lutaram para ser livres.
A guerra colonial acabou sem que eu fizesse um único tiro. A nossa também terminou, e eu nem numa arma peguei. No meio disso nasceram outros heróis sobre quem um dia as crianças vão ouvir falar nas escolas e nas ruas. Mas hoje, quando penso na nossa sociedade não consigo me libertar da sensação de estar amarrado dentro de mim. É verdade que posso ir à Benguela de carro, passar pelo Huambo e chegar até Malange, mas ainda assim me sinto preso. Todos os dias tenho de repetir para mim mesmo que sou livre, mas nem o som da minha própria voz parece o mesmo. Quando falo sobre isso com os meus amigos, com os meus colegas, com os meus contemporâneos da vida, todos concordam e se confessam aprisionados também, mas a seguir olham em volta e repetem o sussurro medroso da canção do Waldemar Bastos: «Xê menino, não fala política…», como se não fôssemos ainda livres.
Somos ou não somos livres, afinal?
Há dias, falando sobre isso com uma amiga, que por acaso está a fazer o curso para a magistratura judicial, ela disse que se sentia da mesma forma, mas que «no nosso país é preciso ter jogo de cintura». No fundo ela queria dizer que é preciso fingir que somos livres, porque assim ao menos temos a certeza de que continuamos vivos, que recebemos o salário no final do mês, ou um carro no serviço. Não cantamos, mas ao menos dançamos, mesmo sem gostar da música. O melhor é apenas tapar os ouvidos ou fingir que somos surdos, queria ela dizer.
Fiquei horrorizado. Escandalizado. Aliás, vivo escandalizado, principalmente quando penso que, se Agostinho Neto e os seus companheiros jogassem o «jogo de cintura», provavelmente não estaríamos ainda independentes, e ao invés de ouvirmos as histórias do Ngunga e do Ngangula, estaríamos a ler Os Lusíadas e a cantar Heróis do Mar, invés do Angola Avante da nossa infância. Se calhar, e ainda bem, Neto e os seus companheiros não sabiam dançar e preferiram lutar.
A verdade é que no nosso país até a mera intenção de falar se tornou num acto «insensato» de coragem, pensar hoje é uma afronta, e por causa disso estamos a construir uma sociedade dos Prós e dos Contra, onde quem fala subverte o sistema e ameaça a estabilidade, como se das palavras viesse o mal que todos vemos, como se o silêncio fosse capaz de corrigir os erros que sabemos, como se o barulho do nosso grito mudo fosse capaz de abafar as frustrações de cada olhar calado.
O falar só assusta numa sociedade onde não há liberdade. Mais do que assustar, quando não há liberdade, o falar incomoda, e as pessoas vivem caladas, ou falam o que não pensam. Mas a maioria não fala, até aqueles que têm a obrigação histórica e moral de o fazer. Não falam, não porque têm medo de falar, mas porque têm medo de pensar e não querem correr o risco de falar.
Silenciamos o pensamento e vivemos calados de boca aberta.
Quando percebo isso, penso nos heróis do tempo do colono. Acredito que era exactamente assim que eles se sentiam, prisioneiros de si. Basta lembrar de um poema, um único poema de A. Neto, A renúncia impossível, e dos lamentos daqueles tempos, para perceber a luta corajosa daquela gente para se libertar da prisão que era a sua vida, resumida a uma mera existência. Uns preferiram morrer, simplesmente porque compreenderam que é impossível renunciar a liberdade e ainda assim continuar vivo.
E quando penso nisso, penso em todos os heróis da liberdade. Para além de Neto, penso em Martin Luther King, penso em Mandela, recordo Gandhi, e percebo que apenas penso neles porque todos, e cada um deles, lutaram pela mesma liberdade. No fundo eles não são heróis de verdade, são simples homens que recusaram ser animais num tempo, como hoje, em que a maioria se contenta a imitar a vida de um cão acorrentado, que ladra e faz piruetas por um pedaço de pão. Exactamente como Agostinho Neto e os seus companheiros, eles lutaram pela liberdade. Não a liberdade perdida nos meandros das constituições, mas a liberdade da alma, a liberdade profunda, infinita e ilimitada, a liberdade que faz de nós gente, a única capaz de revelar a excelência de cada um.
A minha geração, aqueles que não viram a guerra colonial mas sentiram o cheiro da morte nas histórias da guerra, que ouviram as histórias do Agostinho Neto, parece contente com a sua existência, mas na verdade não está. Os da minha geração parece que vivem para ver a hora a passar, enquanto inventam um momento, uma festa, um «caldo», ou ficam na esquina da rua a fazer o jogo de cintura, enquanto bebem uma cerveja e fingem que estão contentes, mas na verdade não estão. Temos apenas medo, e bebemos para afogar os pensamentos, como o poeta que fumava ópio. Fingimos sorrisos mas vivemos a reclamar calados. Calados ninguém nos ouve.
A minha geração vive calada de boca aberta, silenciou o pensamento com medo de falar.
Vivemos com medo mas, se pensarmos bem, nem sabemos do que tememos realmente, e acabamos por ter medo de tudo, até dos nossos pensamentos, das nossas ideias mais brilhantes. Numa sociedade livre as pessoas não têm de se lembrar todos os dias que o são, numa sociedade livre a liberdade é uma condição imanente da própria humanidade, é como o respirar, faz parte de si, e os gestos, os actos, as atitudes dos seus membros surgem com naturalidade, exactamente como o respirar. Quando não respiramos morremos, quando não temos liberdade também.
Uma sociedade que não pensa, porque tem medo de falar, não produz ideias. Uma sociedade que não tem ideias, porque não pensa, nunca atingirá a excelência. Uma sociedade que não permite que os seus membros falem, impede que os seus membros pensem; impedindo que os seus membros pensem, impede que eles atinjam a excelência. Uma sociedade assim nunca irá formar um Barack Obama, um Tony Blair, um Bill Clinton, uma Margareth Tatcher, uma Angela Merkel, uma Hillary Clinton, uma Condoleza Rice, um Seretse Kama, ou pelo menos um Durão Barroso, nem sequer um Cristiano Ronaldo.
É verdade que não são mais tempos de luta, não são mais tempos de forjar heróis, de andar com catanas no Marçal e no Sambizanga, de escrever panfletos às escondidas, de pintar paredes com palavras de ordem, mas também já não são tempos para jogos de cintura! É tempo de esgrimir ideias e valorizar a excelência, é tempo de aprendermos a ser livres, de aprendermos a respeitar a liberdade, a nossa e a dos outros, para permitir que cada um consiga libertar a excelência escondida no seu medo. Porque numa sociedade onde as pessoas não se sentem livres não existe excelência, com excepção da que vem atrelada aos cargos nos órgãos do Estado.
Nasci num tempo em que já não havia nem colonos nem guerra colonial. Havia guerra entre nós, mas colonial já não havia. A minha infância foi povoada de relatos e vestígios de morte, a minha adolescência vivida entre o medo de ir a tropa e a esperança no fim da guerra. No meio de tudo isso ouvia histórias. O futuro era uma incógnita, por isso falava-se do passado. De um passado preenchido de coragem em busca da liberdade. E aos meus olhos, Agostinho Neto e os seus companheiros eram os heróis da vida real.
Enquanto ouvia as histórias, tentava colocar-me naquele tempo, imaginava-me no meio do Rangel ou do Sambizanga, com uma catana na mão, nas reuniões clandestinas do movimento, nas fugas para o Congo, a vida no maquis, nas matas e nas lutas. Imaginava-me na escrita camuflada do Luandino, nas músicas do David Zé, e experimentava o medo, a revolta, a angústia, a raiva também, mas principalmente a coragem dos que construíram aquelas histórias. Sentia inveja por não ter vivido naquele tempo para poder ser um herói como eles foram, porque tinha a certeza que nunca mais iríamos viver tempos como aqueles, em que homens lutaram para ser livres.
A guerra colonial acabou sem que eu fizesse um único tiro. A nossa também terminou, e eu nem numa arma peguei. No meio disso nasceram outros heróis sobre quem um dia as crianças vão ouvir falar nas escolas e nas ruas. Mas hoje, quando penso na nossa sociedade não consigo me libertar da sensação de estar amarrado dentro de mim. É verdade que posso ir à Benguela de carro, passar pelo Huambo e chegar até Malange, mas ainda assim me sinto preso. Todos os dias tenho de repetir para mim mesmo que sou livre, mas nem o som da minha própria voz parece o mesmo. Quando falo sobre isso com os meus amigos, com os meus colegas, com os meus contemporâneos da vida, todos concordam e se confessam aprisionados também, mas a seguir olham em volta e repetem o sussurro medroso da canção do Waldemar Bastos: «Xê menino, não fala política…», como se não fôssemos ainda livres.
Somos ou não somos livres, afinal?
Há dias, falando sobre isso com uma amiga, que por acaso está a fazer o curso para a magistratura judicial, ela disse que se sentia da mesma forma, mas que «no nosso país é preciso ter jogo de cintura». No fundo ela queria dizer que é preciso fingir que somos livres, porque assim ao menos temos a certeza de que continuamos vivos, que recebemos o salário no final do mês, ou um carro no serviço. Não cantamos, mas ao menos dançamos, mesmo sem gostar da música. O melhor é apenas tapar os ouvidos ou fingir que somos surdos, queria ela dizer.
Fiquei horrorizado. Escandalizado. Aliás, vivo escandalizado, principalmente quando penso que, se Agostinho Neto e os seus companheiros jogassem o «jogo de cintura», provavelmente não estaríamos ainda independentes, e ao invés de ouvirmos as histórias do Ngunga e do Ngangula, estaríamos a ler Os Lusíadas e a cantar Heróis do Mar, invés do Angola Avante da nossa infância. Se calhar, e ainda bem, Neto e os seus companheiros não sabiam dançar e preferiram lutar.
A verdade é que no nosso país até a mera intenção de falar se tornou num acto «insensato» de coragem, pensar hoje é uma afronta, e por causa disso estamos a construir uma sociedade dos Prós e dos Contra, onde quem fala subverte o sistema e ameaça a estabilidade, como se das palavras viesse o mal que todos vemos, como se o silêncio fosse capaz de corrigir os erros que sabemos, como se o barulho do nosso grito mudo fosse capaz de abafar as frustrações de cada olhar calado.
O falar só assusta numa sociedade onde não há liberdade. Mais do que assustar, quando não há liberdade, o falar incomoda, e as pessoas vivem caladas, ou falam o que não pensam. Mas a maioria não fala, até aqueles que têm a obrigação histórica e moral de o fazer. Não falam, não porque têm medo de falar, mas porque têm medo de pensar e não querem correr o risco de falar.
Silenciamos o pensamento e vivemos calados de boca aberta.
Quando percebo isso, penso nos heróis do tempo do colono. Acredito que era exactamente assim que eles se sentiam, prisioneiros de si. Basta lembrar de um poema, um único poema de A. Neto, A renúncia impossível, e dos lamentos daqueles tempos, para perceber a luta corajosa daquela gente para se libertar da prisão que era a sua vida, resumida a uma mera existência. Uns preferiram morrer, simplesmente porque compreenderam que é impossível renunciar a liberdade e ainda assim continuar vivo.
E quando penso nisso, penso em todos os heróis da liberdade. Para além de Neto, penso em Martin Luther King, penso em Mandela, recordo Gandhi, e percebo que apenas penso neles porque todos, e cada um deles, lutaram pela mesma liberdade. No fundo eles não são heróis de verdade, são simples homens que recusaram ser animais num tempo, como hoje, em que a maioria se contenta a imitar a vida de um cão acorrentado, que ladra e faz piruetas por um pedaço de pão. Exactamente como Agostinho Neto e os seus companheiros, eles lutaram pela liberdade. Não a liberdade perdida nos meandros das constituições, mas a liberdade da alma, a liberdade profunda, infinita e ilimitada, a liberdade que faz de nós gente, a única capaz de revelar a excelência de cada um.
A minha geração, aqueles que não viram a guerra colonial mas sentiram o cheiro da morte nas histórias da guerra, que ouviram as histórias do Agostinho Neto, parece contente com a sua existência, mas na verdade não está. Os da minha geração parece que vivem para ver a hora a passar, enquanto inventam um momento, uma festa, um «caldo», ou ficam na esquina da rua a fazer o jogo de cintura, enquanto bebem uma cerveja e fingem que estão contentes, mas na verdade não estão. Temos apenas medo, e bebemos para afogar os pensamentos, como o poeta que fumava ópio. Fingimos sorrisos mas vivemos a reclamar calados. Calados ninguém nos ouve.
A minha geração vive calada de boca aberta, silenciou o pensamento com medo de falar.
Vivemos com medo mas, se pensarmos bem, nem sabemos do que tememos realmente, e acabamos por ter medo de tudo, até dos nossos pensamentos, das nossas ideias mais brilhantes. Numa sociedade livre as pessoas não têm de se lembrar todos os dias que o são, numa sociedade livre a liberdade é uma condição imanente da própria humanidade, é como o respirar, faz parte de si, e os gestos, os actos, as atitudes dos seus membros surgem com naturalidade, exactamente como o respirar. Quando não respiramos morremos, quando não temos liberdade também.
Uma sociedade que não pensa, porque tem medo de falar, não produz ideias. Uma sociedade que não tem ideias, porque não pensa, nunca atingirá a excelência. Uma sociedade que não permite que os seus membros falem, impede que os seus membros pensem; impedindo que os seus membros pensem, impede que eles atinjam a excelência. Uma sociedade assim nunca irá formar um Barack Obama, um Tony Blair, um Bill Clinton, uma Margareth Tatcher, uma Angela Merkel, uma Hillary Clinton, uma Condoleza Rice, um Seretse Kama, ou pelo menos um Durão Barroso, nem sequer um Cristiano Ronaldo.
É verdade que não são mais tempos de luta, não são mais tempos de forjar heróis, de andar com catanas no Marçal e no Sambizanga, de escrever panfletos às escondidas, de pintar paredes com palavras de ordem, mas também já não são tempos para jogos de cintura! É tempo de esgrimir ideias e valorizar a excelência, é tempo de aprendermos a ser livres, de aprendermos a respeitar a liberdade, a nossa e a dos outros, para permitir que cada um consiga libertar a excelência escondida no seu medo. Porque numa sociedade onde as pessoas não se sentem livres não existe excelência, com excepção da que vem atrelada aos cargos nos órgãos do Estado.
Fonte: Jornal O PAÍS
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